Era meio-dia. Alguns almoçavam no refeitório, muitos trabalhavam nos arredores: nas hortas, plantações, pousadas e construções. Era verão. Quase sempre chovia. No dia 25 de janeiro de 2019, aconteceu um dos maiores desastres da mineração no país, depois do rompimento de uma barragem em Mariana. O desastre humanitário e ambiental causou a morte de 277 pessoas. Algumas vidas ainda estão desaparecidas na lama tóxica, mais de seis anos após o rompimento da barragem.
O livro Paraó e Peba, de Monica Bonilha, publicado pela Editora Yellowfante (Grupo Autêntica), nasceu em meio a essa tragédia, acompanhada de muito perto por mim e por familiares. Minha irmã mora em Brumadinho e é uma ambientalista muito ativa, com diversos projetos de proteção às serras e parques que contornam Belo Horizonte.
Na tentativa de contar esse drama para crianças, uma história real e repleta de perdas, surgiram os personagens: o Paraó e a Peba. Uma dupla de amigos peixinhos que sobreviveram à tragédia (ou crime).
A trama se passa dentro do rio onde vivem os amigos. Um rio de águas claras, onde nadam tranquilamente. O texto apresenta tudo o que se passou em Brumadinho, mas sob o ponto de vista dos dois peixes, que não sabem o que é uma barragem, nem imaginam que estrondo foi aquele que trouxe tanta lama para as águas claras. Tudo fica escuro, e pedaços de casa, pedaços de carro e árvores caem no rio. A lama invade, e os peixes, sem rumo e sem oxigênio, lutam pela sobrevivência. Paraó se perde de Peba e, com toda aquela escuridão, não conseguem se encontrar.
Peba está exausta de tanto nadar em busca do amigo no meio da lama. Mas será que ela vai encontrar seu amigo?
Não vou contar o fim da história aqui, mas posso dizer que fizemos uma discussão intensa para decidir se um dos peixinhos iria morrer atolado ou não.
A escuta amorosa
Estive em Brumadinho muitas vezes logo após esse acontecimento que ouso chamar de crime. Conheci pessoas que perderam muitos parentes e algumas que sobreviveram por “milagre”. Mas o município é enorme, um dos maiores em extensão do país. O rio Paraopeba, afluente do São Francisco, nem era conhecido por todos os moradores de Brumadinho, mas, de repente, a cidade entrou no mapa mundial. Estava em todos os noticiários, e milhares de grupos chegaram com ajuda.
Para nós, um grupo de mulheres que se uniu para fazer qualquer coisa, a ajuda urgente e necessária naquele momento era a escuta amorosa. Ouvir o choro de quem ficou, escutar dezenas de vezes a mesma história do filho que não voltou, da usina. Enquanto isso, bombeiros e a comunidade buscavam, entre os destroços, as vítimas.
Nesse momento, pensar nas crianças ali presentes, e nas tantas outras que ouviam tudo isso, me fez considerar: como contaria aos meus netos uma história tão triste, resultado da irresponsabilidade daqueles que desejam sempre muito mais, sem levar em conta os riscos, os possíveis imprevistos e a revolta da natureza frente a tanta ambição dos seres humanos?
Líder do campeonato
Controlada pela Vale S.A., a barragem chegou a ser classificada como de “baixo risco” e “alto potencial de danos” pela empresa. A tragédia elevou o Brasil à posição de campeão – o país com o maior número de mortes neste tipo de acidente. Quando somamos outros dois desastres do mesmo tipo e o número de mortes e graves danos ambientais – o rompimento da barragem da Herculano Mineração, em Itabirito (2014, com três mortes), e o rompimento da barragem em Mariana (2015, com dezenove mortes) – o Brasil é campeão!
Os autores que têm um menino ou um moleque morando sempre em seu coração
Além de Paraó e Peba, dois outros livros também se destacam na literatura para crianças, trazendo a agonia de rios, ribeirinhos e o rompimento de barragens em Minas Gerais: Um dia um rio, de André Neves (Editora Pulo do Gato), e Sagatrissuinorana, de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz (Editora ÔZé). Este último é uma homenagem a Guimarães Rosa (1908-1967), ao usar seu estilo para recontar a fábula dos “Três Porquinhos” como uma metáfora para o rompimento de barragens como em Mariana e Brumadinho.
E como diz Milton Nascimento: “Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração – toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão”.
Creio que, quando esse menino “me fala das coisas bonitas que não deixaram de existir”, surge essa energia chamada inspiração, que acende o desejo de falar daquilo que é cruel, de forma lúdica, de um jeito que a criança guardará no coração. Provavelmente, quando adulta, fará diferente do que no passado os adultos fizeram errado, por ganância ou estupidez.