Maria mãe de Deus  – a resiliência feminina.

Na minha infância, o preconceito anti-católico  chegava ao absurdo de não poder ter um presépio de Natal  em casa porque era de tradição católica. Mas, fazíamos árvores de Natal e esperávamos que o Papai Noel trouxesse presentes. Nesta mesma linha, a figura de Maria sempre passou quase despercebida na cena do nascimento de Jesus. Ou ela estaria ali, vestida de azul e branco (é incrível como estas cores da arte europeia colaram no nosso consciente coletivo) sentada num burrinho ou ao lado de uma manjedoura. 

Muito anos se passaram até que eu fosse apresentada à genealogia de Jesus. Em principio, era uma chatice sem fim ler todos aqueles nome. Pra que? Mas, um tesouro se escondia ali que revolucionou minha alma. 

As outras genealogias,  eram também uma ladainha, mas aquela, do primeiro capítulo do Evangelho segundo Mateus, é a única  genealogia que menciona mulheres. Claro, precisava falar de Maria e não somente de José que nem pai, de Jesus era, não é? Não faria sentido, no final da genealogia, surgir uma única mulher. Mas, seria simples explicar desta maneira, e foi isto que ouvi por muito anos. Também ouvia que Raabe era uma prostituta e seu nome estava naquela linhagem – o que simbolizava que na família de Deus havia lugar para todos. 

Acho que fui aprendendo mais, sobre aquela ladainha a cada década?até que? 

Parei para estudar  de verdade, a genealogia de Jesus, que vai de Abraão até “José, esposo de Maria, de quem nasceu Jesus” (Mt 1, 16). Primeiro ponto: 

Todas as genealogias descritas no Antigo Testamento são de linhagem masculina, e isto já estava bem claro,  mas o que é extraordinário nessa lista é que ela não só inclui quatro mulheres,  mas quais quatro mulheres!?

Bom, a primeira é  Tamar, nora de Judá.  Como Judá não quis cumprir seu” dever legal “de se casar com Tamar, e dar-lhe um filho. Ela então, se vestiu de prostituta, ficou a espera na rua, deitou-se com Judá, seu sogro, engravidando-se dele.

“Sua nora Tamar se prostituiu e engravidou da sua prostituição” (Gn 38, 24).

Logo depois, vemos a Raabe, que tinha a prostituição como   profissão. Muito lembrada pois, ajudou espiões israelitas a fugirem de Jericó. 

“Então, ela os fez descer por uma corda pela janela, pois a sua casa estava construída na muralha, visto que morava ali” (Josué 2, 15).

Aí, vem a Ruthe. Ela era uma moabita, viúva de um israelita. Ruthe seduziu Boaz. A palavra “pés” no hebraico bíblico pode ser “aos pés”, mas também,  poderia estar se referindo  aos órgãos sexuais. Seja lá como for, o texto é bastante sugestivo. Sua sogra Noemi fala assim: 

“Lava-te, perfuma-te, põe teu manto e desce à eira. Mas não te deixes reconhecer por esse homem, até que tenha acabado de comer e beber. Quando ele se deitar, verá o lugar onde dorme: aproxima-te, descobre-lhe os pés e deita-te; ele mesmo te dirá o que terás a fazer”… “Depois, lá pela meia noite, o homem sentiu um calafrio, e se inclinou para a frente: eis que uma mulher estava deitada a seus pés. Boaz disse: ‘Quem és?’ Ela respondeu: ‘Sou Rute, tua serva. Desposa tua serva'”? “Ela se deitou a seus pés até de manhã e se levantou antes que uma pessoa pudesse reconhecer a outra. Ele dizia: ‘Que não se saiba que esta mulher veio à eira”” (Rute 3, 3-14).

Depois de Ruthe,  temos Beteseba, a esposa de Urias. Aquela que o Rei  Davi viu nua quando, ela está tomando banho e mandou buscá-la. Foi assim que ela  engravidou.

“Então Davi, enviou emissários que a trouxessem. Ela veio ter com ele, e ele deitou-se com ela… E Beteseba concebeu e mandou dizer a Davi: ‘Estou grávida'” (2 Sm 11, 4-5).Este trecho da bíblia é inimaginável – ela mandou um recado para o rei “ahh, queria de contar que estou gravida, viu? ” Ahhh e tem mais, o marido estava lutando na guerra e nao poderia ter engravidado a esposa?e todo mundo conhece a história, né? 

Para quem não conhece, vai um resumo:  Davi mandou buscar Urias, o marido, soldado. Assim, ele ia transar com a vizinha do rei e pronto – tufo resolvido.  Ele veio, mas, o soldado era tão gente fina, que  como ninguém de seu batalhão teve esta regalia, ele não dormiu com sua mulher, porque achou que não era justo? 

Davi então mandou o soldado de volta pra guerra e ordenou que ele ficasse na frente da batalha – onde certamente, iria morrer, e morreu. 

No texto não há nenhuma menção de que ela tenha seduzido Davi enquanto tomava o famoso banho. Mas, alguém me explique, o que é que Davi fazia? Ali,  na janela do palácio, espionando a vizinha tomando banho ? Ahhhh, esta passagem é tão absurda! Ao pensar nesta cena, em toda a história, não é? Ele não tinha um binóculo, não tinha luneta, nada, eu acho. E ainda teve que mandar buscar?ou seja , a notícia correu o mundo. A rádio corredor sabia de tudo! Pior, Davi, como rei, tinha pelo menos 700 mulheres no palácio! 

Bom, esqueçamos o rei Davi, que apesar de tudo isto, era um homem Segundo o Coração de Deus. Imagino que Betesaba também era uma mulher segundo o coração de Deus, mas esqueceram de mencionar.  O fato é que ela estaria na genealogia de Jesus. Se não fosse uma mulher especial  seria a mãe do rei Salomão?   Se ela foi escolhida para estar com um homem segundo o coração de Deus, provavelmente, era uma mulher de fé . Mais que isto, ela mostra ser uma mulher de  personalidade  forte em dois momentos cruciais – primeiro, mandando o recado ao rei: “estou grávida”. Muito atrevida ela, né? Sabe por que? Porque o mais simples seria Davi mandar mata-la – era tão fácil matar alguém? matem aquela vigarista! Pronto. Adúltera. Não importava que o pai da  criança  era o rei. Importava que ela adulterou e segundo a lei, seria apedrejada.  Ela foi corajosa. Uma mulher que era diferente das demais. NÃo teve medo do Rei. Imagine!

Anos depois,  quando Davi estava no seu leito de morte,  ela o convenceu  a ungir seu próprio filho Salomão como o próximo rei, substituindo o filho mais velho de Davi. Isto foi outro ato de muita coragem.

“Quanto a ti, meu senhor o rei, todo Israel tem os olhos fixos em ti para que lhe anuncies quem há de sentar-se no trono depois de meu senhor o rei” (1 Reis 1, 20).

Mas, afinal? O que Maria tem a ver com essas quatro mulheres, que têm uma história sexual nada virginal nem recatada. Bom, vamos imaginar que ela, Maria  é apenas a quinta mulher e não tem nada a ver com a outras.  Isto seria aceitável se Maria também não tivesse uma história sexual bem diferente do “normal”. Ela está grávida, mas o homem que é seu noivo não é o pai da criança. Bom,  isto por si só, já seria motivo de escândalo.

Maria poderia ter sido apedrejada até a morte, por adultério. Segundo o Evangelho de Lucas, ela consentiu com esta gravidez: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Aliás, um parêntese aqui, para esta frase, a mesma foi usada por Jesus na Cruz. De quem será que ele ouviu isto? Maria deve ter contado a seus filhos infinitas vezes esta história. Como o anjo apareceu. Porque é uma história que uma mãe certamente contaria várias vezes aos filhos, não é?

E ainda ouviria:

– mamãe, conta de novo aquela história do anjo?

Mas, esse não é o único ponto.  As quatro mulheres são fortes e poderosas, independentes, com iniciativa, ao ponto até  de enganar. 

Isto  nos dá uma ideia bem diferente de Maria. Aquela visão tradicional de uma mulher modesta, submissa e silenciosa, e todas as características geralmente, ressaltadas na Virgem-Maria -mãe de Deus : humildade, obediência cega, abnegação, pureza, paciência e bondade angelical.

Quando olho para Maria usando uma lente diferenciada, pela qual também vejo estas quatro  mulheres,  percebo sua história de uma maneira muito mais significativa. Assim como Tamar, Raabe, Rute e BeteSeba, Maria não se encaixa no molde tradicional. Ela era uma mulher comum, e ao mesmo tempo, incrivelmente corajosa ( destemida) para seu tempo. 

Na minha tradição cristã, o papel de Maria como a mãe de Jesus é venerado e celebrado, especialmente no Dia das Mães. Mas,  nossa compreensão de Maria se distância da realidade de sua época e das mulheres que ela representava. Para explorar uma  perspectiva mais ampla, sobre esta mulher, reconhecer  que na genealogia de Jesus, podemos encontrar pistas sobre as mulheres que moldaram a história da mãe de Jesus e a precedem, é fundamental.

Conhecer esta Maria mudou minha alma e minha crença. A narrativa ( palavra muito desgastada ) que sempre foi repassada de cristianismo, veio encharcada de conceitos sociais. Absorvemos com nossos absorventes, porque sangramos mensalmente, todos aqueles pre-conceitos que nem estão descritos na bíblia. Por que? Porque nem se fala em mulher.

Quando morei em Chipre – de Cultura ancestral muito parecida com a cultura grega- hebraica da Galiléia  de Jesus de Nazaré, e Maria, conheci um mundo totalmente diferente – uma sociedade matriarcal. Quando nasce uma filha, os pais compram um terreno, e começam a construir a casa dela. A casa será sempre da mulher.  Caso ela se separe do marido, ele volta a morar com a mãe, também proprietária de sua casa. Durante o noivado , é esperado que os noivos durmam juntos e o casamento quase sempre acontece com a noiva grávida. No dia do casamento , o colchão do casal é carregado pela rua, as crianças brincam nele e os adultos jogam moedas. Para trazer sorte, riqueza e muitos filhos. O nascimento de um mulher é mais celebrado do que  de um homem . Perguntei por que? Sei que tudo isto que parece de outro planeta, mas,  aprendi em um vilarejo de tradições antigas. A resposta foi: os homens se cansam rápido das suas esposas e acabam se embebedando, não cuidam da família. Veja nos bares, nas portas das igrejas – só tem homens bebendo e jogando, porque estão  sem casa. As mulheres trabalham, se ajudam . São elas  que garantem o sustento do lar.

Este texto é minha homenagem a todas as mulheres mães, marias, fortes, obstinadas, corajosas, que nem se quer foram mencionadas. É também minha alma lavada de um cristianismo embrutecido , por velhos conceitos que não cabem mais, e nunca foram verdadeiros. É meu reconhecer Maria como uma mulher de pele escura, de cabelos bem enrolados e soltos ao vento, de olhos negros, grandes, de mãos calejadas, mãe de muitos filhos, viúva que cuidou da família, que ensinou a Jesus muitos dos princípios que ele passou a ensinar. Uma mulher que provavelmente, era a responsável pela a festa das bodas de Cannã e pediu ao filho que ajudasse, pois o vinho que era da responsabilidade dela, havia acabado. Ele fez assim, seu primeiro milagre, porque este era o negócio da mãe. Ela comandava aquela festa, uma mulher que participava ativamente de eventos sociais, que estava ali, muito provavelmente  trabalhando, como todas nós. E, a estas alturas, seu marido, José já havia morrido e quem ajudava a mãe era o filho mais velho, Jesus, o Cristo.

Esta Maria não virgem, fala comigo todos os dias, que foi muito duro saber que seu filho primogênito iria morrer. Mas, que ela preferiu ficar ali, ao seu lado do que virar as costas e sair. Todos a conheciam como a mãe de Jesus. Seus filhos, outros  irmãos de Jesus, fizeram de tudo pra tira-la dali, mas, ela insistiu e ficou, até o fim.

Na ressurreição, foi a primeira a compreender o que havia acontecido , e seu nome Maria se tornou um símbolo do cristianismo ?há Marias negras como a nossa senhora brasileira. Marias espanholas como nossa senhora de Guadalupe e mesmo que o mundo europeu tenha trazido uma mulher europeia para demonstrar Maria em toda as artes clássicas?os outros povos a viam como Maria.  Maria está presente em todas as etnias. 

E é esta mãe de Deus ?que trás consigo os primeiros sinais  do cristianismo e sua essência. Uma fé que não está presa a conceitos, a padrões sociais, a leis de quem pode o quê ? uma  fé que não faz diferença entre  mulher e homem, escravo e servo. Esta foi a fé que  Maria  transmitiu a seus filhos. 

A autora Bonnie Miller-McLemore fala sobre Maria e sua relevância para as mulheres modernas. Em seu trabalho, ela destaca a importância de reconhecer as complexidades da maternidade e a diversidade de experiências das mulheres ao longo da história. Miller-McLemore nos lembra que Maria não era apenas uma figura idealizada, mas sim, uma mulher real, com suas próprias lutas e triunfos.

“Em uma época em que as mulheres muitas vezes eram relegadas ao papel de coadjuvantes na história, Maria destaca-se como uma figura central e poderosa.

Sua coragem, fé e dedicação ao seu filho desafiam as normas sociais e religiosas de sua época e continuam a inspirar milhões de pessoas em todo o mundo.”

Neste dia que muitos ainda, celebram o Dia das Mães, acredito ser  importante honrar Maria como a Mãe de Jesus. Mas, para mim, também é  fundamental ,reconhecer seu profundo vínculo com as mulheres, de todos os tempos. 

Maria hoje, e sempre, é muito mais que “uma figura religiosa”; ela representa um símbolo da força amorosa da mulher e da resiliência do feminino. Ao escrever a ultima frase, imagino que alguns ficarão escandalizados com este texto, mas, já adianto que estes conceitos estão bem defasados. Por que? Simplesmente, porque ainda tratam apenas de 2 gêneros. O caminho é longo. E, se creio que na bíblia temos todas as respostas, vamos reler? 

Por Monica Bonilha