Horas difíceis para os adultos _ como contar 

para a criança que a vovó morreu?

Minhas filhas tiveram o privilégio de conviver com minhas avós. Contar que elas se foram nunca foi fácil porque era difícil, primeiramente, pra mim. 

Em todas as ocasiões, estávamos fora do país e a distância fazia tudo mais triste porque nós brasileiros, compartilhamos a dor nos velórios. Choramos juntos e nos abraçamos. 

Mas, uma das coisas que fiz foi contar histórias simples das minhas avós. Havia sempre uma nova história pra contar sobre elas. Algumas votaram livrinhos de papel craft que elas amavam. Aquela que a vovó cuidou de um sabiá que caiu do ninho com angu de fubá. Mas como ela deu o angu, no cabo de uma colherzinha, o bico ela muito sensível e acabou ficando ligeiramente torto, impedindo o bichinho de cantar.

As histórias eram sempre singelas, e enchiam minha memória afetiva quando falava delas – como aquela do fogaozinho à lenha que vovó fez pra mim e minha prima, onde cozinhávamos arroz, feijão em panelinhas de barro, exatamente como ela. Também fazíamos passarinhadas – é, naquele tempo a gente matava passarinho.  Aprendi a depenar um rolinha do mesmo jeito que ela fazia com uma galinha.

Quando falava sobre isso, minha filhas sempre faziam aquelas carinhas de horror! – mamãe! Você matava passarinho? Sim, e a vovó matava galinha!

Era tão natural. A história é tão marcante que acabamos contando para meus netos, que fazem mesma pergunta em tom de recriminação :

-vovó, eu não acredito que você matava passarinho! É verdade?

  • é verdade, e enquanto minha vó matava galinha ,minha prima e eu matávamos rolinhas e aprendemos a cozinhar. 
  • Mais de uma rolinha? 

Geralmente não dou muitos detalhes desse tempo cruel, mas sim, eram muitas rolinhas. E havia todo um preparo de arapucas para pegar as pequenas passarinhas. 

Hoje, nem acredito que isso aconteceu. Impensável deixar crianças fazerem uma coisas dessas, não é?

Mas é a história de minha avó comigo e agora é a história que meus netos conhecem bem, da vovó Mônica que matava rolinhas.

Mas, para salvar minha avó, dessa imagem de bárbara e cruel, alinhavo a história explicando que ela amava tanto os bichinhos e especialmente os pássaros que tinha uma licença especial do IBAMA para receber animas  – ela era criadora de pássaros exóticos – araras azuis, vermelhas, tucanos, pavões – todas as aves que eram apreendidas por tráfego ilegal, iam parar nos imensos viveiros da vovó.  

Até que certo dia, outra história que minhas filhas passaram para os filhos, um enxame de abelhas estourou dentro de uma árvore oca, e entrou nos viveiros. Ficamos dentro da casa, com todos os vidros fechados, mas la de dentro, dava pra ver as araras ficando pretinhas de abelhas e de repente, caindo duras, no chão. Meu avô conseguiu salvar um cavalo que estava perto dos viveiros, soltando a corda, e espantando o cavalo para longe dali. 

Mas todos os bichos morreram. 

Nunca vi minha avó tão desolada. Ela não era de chorar, debulhar em lágrimas, ficava sentada, quieta. Olhando a cena. Muito quieta. Não mexia nenhum músculo. Uma de nós poderia sentar ao lado dela, e ela poderia dar a mão para uma das netas. Mas nenhuma de nós conseguiu ficar perto. Ela estava em choque. A tragédia demorou horas. Não foi uma coisa rápida, e não podíamos sair de casa. Uma a uma, as aves da vovó foram morrendo devagar. Olhando pela janela, ela assistiu todas as mortes. Até que as abelhas se foram. Vovó agora olhava para o chão. Quieta. As mãos nos joelhos. Raramente vi minha avó, literalmente, cruzar os braços.  

Dali, ela se levantou, foi direto ao galinheiro que ficava do outro lado da fazenda. Claro, ela queria ver se suas galinhas tinham levado o mesmo fim.

Depois de muito insistir, fomos autorizados a sair de casa, não havia mais abelhas. Encontramos vovó, no terreiro, rodeada de galinhas, fazendo aquele barulhinho que só ela sabia pruuuu pruuuu ta co pruuuu taco. E jogando farelinho de milho para as suas meninas. 

Avós nunca se vão.